“The whole strength and value, then, of human judgment, depending on the one property, that it can be set right when it is wrong, reliance can be placed on it only when the means of setting it right are kept constantly at hand. In the case of any person whose judgment is really deserving of confidence, how has it become so? Because he has kept his mind open to criticism of his opinions and conduct. Because it has been his practice to listen to all that could be said against him; to profit by as much of it as was just, and expound to himself, and upon occasion to others, the fallacy of what was fallacious.”
On Liberty, J. S. Mill
NÃO PODERÍAMOS IMAGINAR, em dezembro de 2019, que nos encontrávamos na soleira de um portal negro que conduziria a um mundo radicalmente transformado. Um mundo em que as rotinas de trabalho, escola e vida social, tais quais praticadas há décadas, seriam substituídas por um regime de confinamento domiciliar, em que as interações humanas passariam a ser mediadas por telas de computador numa interminável sequência de videoconferências e “lives” com áudio lo-fi e iluminação abominável. Em que os templos da vida comunitária – restaurantes, shoppings, academias, cinemas, estádios e igrejas – seriam fechados, suas atividades suspensas por tempo indeterminado, jogando milhões no desemprego do dia para a noite. Que nossas rotinas diárias – de trabalho, lazer, confraternização, estudo – seriam alteradas até se tornarem irreconhecíveis.
Algumas mudanças, cabe ressalvar, foram positivas e parecem ter vindo para ficar. Segundo o IPEA, cerca de 23% das ocupações migraram para trabalho remoto. Muitas empresas descobririam que trabalho remoto não traz prejuízos para produtividade – quiçá, pode aumentá-la. Ficou claro, também, que o escritório, tal qual concebido há décadas – com planos abertos, baias expostas, distrações e ruído – está obsoleto. Trabalhando de casa, eliminamos o tempo gasto no trânsito e, de bônus, reduzimos nossa dependência ao automóvel e a outros meios de transporte emissores de carbono – com todos os benefícios ambientais e ganhos de eficiência daí advindos. Comércio online e serviços de entrega tiveram grande expansão na pandemia, abrindo a perspectiva de redução de custos logísticos.
Tudo isso é escasso consolo, claro, para os milhões de brasileiros atingidos de forma contundente pela pandemia – seja pela queda da renda familiar, perda do emprego, sociedades desfeitas ou negócios encerrados. Para as centenas de milhares que perderam familiares, sofreram sequelas permanentes ou para os quase 70 mil que até junho perderam a vida em decorrência da doença, não há retorno possível ao status ex-ante.
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A pandemia transtornou rotinas de trabalho e hábitos sociais, mas nenhum setor foi tão profundamente atingido quanto a economia.
É possível quantificar a magnitude do choque econômico pela evolução das projeções de crescimento do PIB mundial, divulgadas trimestralmente pelo FMI: em janeiro deste ano, o Fundo ainda projetava crescimento acima de 3% para a economia mundial em 2020. Em junho, a projeção havia sido revisada para contração de 4,9% – uma variação de mais de 8 pontos percentuais em menos de seis meses. A ONU estima que os programas de estímulo econômico, lançados por governos ao redor do mundo na esteira da pandemia, totalizem mais de 5% do PIB mundial.
Expectativa de crescimento do PIB mundial (FMI)
Segundo a pesquisa Focus do Banco Central, o PIB brasileiro encolherá 6,5% em 2020. O FMI projeta queda de mais de 9%. O número final, qualquer que seja, quase certamente será a maior queda desde a Grande Depressão, há quase um século. O desemprego deverá encostar em 15% até o fim do ano. Uma consequência do colapso na atividade será a menor inflação anual desde 1998: 1,7%, segundo a pesquisa Focus (o que, a se confirmar, será o primeiro ano a registrar inflação abaixo do piso da meta). O Comitê de Política Monetária (COPOM) reagiu ao tombo dos índices de preços derrubando a SELIC à sua mínima histórica, antes impensáveis 2,25% – dando sobrevida ao grande movimento de queda nos juros que teve início em 2016 (e que os fundos da Giant exploraram com bastante êxito).
Expectativa de crescimento do PIB e inflação no Brasil (Boletim Focus)
O real foi uma das moedas que sofreu maior depreciação no mundo durante o primeiro semestre do ano. A cotação da moeda brasileira contra o dólar chegou a beirar os 6,00, apesar de mais de US$ 40 bilhões vendidos pelo Banco Central. Esse movimento foi notável, também, pela alta volatilidade – num momento em que os mercados globais se recuperavam das perdas de março e a volatilidade, em geral, estava em queda. O fenômeno intrigou analistas e o próprio Banco Central. Parte da explicação é a saída de capitais estrangeiros entre abril e maio, que superou a de anos anteriores e a de outros países emergentes. Mudanças na legislação tributária, que afetaram a demanda por hedge, bem como a rápida deterioração das contas públicas, foram apontadas como fatores na depreciação da moeda: analistas projetam um déficit nominal beirando 15% que deverá levar o endividamento bruto do setor público a superar 100% do PIB – nível muito acima ao de outros países em desenvolvimento. É consenso, entretanto, que os juros baixos foram o fator preponderante na desvalorização do real e, para muitos, motivo para que o COPOM encerre o ciclo de queda dos juros.
Efeitos da intervenção do Banco Central no mercado de câmbio brasileiro
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Entre outros grandes deslocamentos tectônicos, a pandemia de 2020 precipitou um movimento iniciado na Grande Crise Financeira (GCF) de 2008: a reabilitação, nos domínios acadêmico e de public policy, de políticas econômicas de inspiração keynesiana.
Além de calças boca de sino e música disco, a década de 70 foi marcada pelas crises do petróleo, o baixo crescimento, inflação alta e déficits públicos astronômicos. O velho consenso de políticas fiscais anticíclicas keynesianas, empregadas durante o pós-guerra, parecia ter ruído. Sobre suas cinzas formou-se uma nova ortodoxia econômica, chamada por alguns de neoclássica, que viria a se consolidar na década seguinte na esteira da revolução de mercado liderada por Reagan e Thatcher. Por três décadas essa ortodoxia dominou a academia, orientou boa parte da política econômica mundial e produziu robusto crescimento, inspirando o termo “neoliberalismo” e o chamado “Consenso de Washington”. Mesmo a América Latina, tradicionalmente afeita a políticas intervencionistas, protecionistas e estatizantes – a antítese da ortodoxia neoclássica – passou por um boom de reformas liberalizantes na década de 90.
A GCF foi a primeira estaca no coração dessa ortodoxia. A pandemia desferiu o segundo e, talvez, fatídico golpe.
Economistas travaram um feroz debate em torno da melhor resposta à GCF – debate este, com fortes ecos do grande duelo intelectual entre Keynes e Hayek na década de 30.
Na versão contemporânea desse duelo, de um lado perfilavam-se economistas neokeynesianos como Paul Krugman (e seus colegas de MIT: Stanley Fischer, Olivier Blanchard et al.), departamentos de universidades apelidadas “água salgada”, o FED, o FMI e outros. Do outro estavam monetaristas e neoclássicos, como Paulo Guedes, adeptos do Ciclo de Negócios Real, o ECB (pré Draghi), universidades de “água doce” e nove entre dez gestores de hedge funds.
Para o primeiro grupo, 2008 foi uma crise financeira clássica similar às crises bancárias da primeira metade do século 20. Como a Grande Depressão de 1929, a GCF foi particularmente devastadora pelo seu alcance global – consequência da enorme alavancagem e interconexão dos mercados financeiros. A perda da confiança causada pelo colapso do sistema financeiro jogara a economia no que, no contexto do modelo IS-LM, keynesianos chamam de “armadilha de liquidez”: situação em que a economia patina abaixo do potencial sem conseguir retomar o pleno emprego porque, mesmo com juros zero, a liquidez fica “empoçada” nos bancos comerciais. A taxa de juros que restauraria o equilíbrio a pleno emprego é negativa e, portanto, impraticável. Diante da impossibilidade de restaurar pleno emprego via política monetária convencional, resta a alternativa da política fiscal.
Segundo um paradoxo em economia, quando todos tentam poupar simultaneamente, o resultado é o encolhimento do bolo e, paradoxalmente, todos terminam mais pobres.
Esse paradoxo explica por que, na armadilha de liquidez, o senso comum é virado do avesso: frugalidade é vício e perdularismo, virtude. Ao invés da parcimônia da dona-de-casa, que espreme o orçamento doméstico para juntar poupança no fim do mês, o que se deseja é esbanjar com a irresponsabilidade de um bêbado.
Com o setor privado na berlinda e a política monetária inoperante, o governo assume o papel de gastador de última instância. Escancara os cofres para transferir renda, capitalizar bancos e socorrer empresas (e, se tudo mais falhar, despejar dinheiro de helicópteros). A conta por essa extravagância se transforma em promessas de pagamento futuro que vão inchar a dívida pública. Na versão benigna dessa história, a dívida pública cresce num primeiro momento, mas, com a retomada do crescimento, retorna a níveis administráveis. Essa é a história dos anos imediatamente posteriores à Segunda Guerra, quando o endividamento dos países combatentes atingiu níveis recordes e, em pinceladas largas, do pós-guerra até a década de 70.
O outro lado aceita o diagnóstico de depressão induzida por perda de confiança, mas rejeita a prescrição keynesiana de gasto fiscal anticíclico. O gasto, argumenta ele, precisa ser financiado – seja via aumento de impostos, seja via inflação (a terceira possibilidade, calote da dívida pública, só ocorre quando a dívida não é financiada em sua própria moeda). Os agentes privados são racionais e conseguem antever que, de uma forma ou outra, a conta da gastança será paga por eles. Prevendo que a orgia acabará inevitavelmente em ressaca, os agentes privados reduzem o nível de investimento. A queda no investimento frustra o crescimento. O gasto público pressiona preços e o resultado é a estagflação dos anos 70 (nos países desenvolvidos) e dos anos 80 (na América Latina). Para neoclássicos, o remédio indicado para recessões é laissez-faire – deixar falir e expurgar as empresas ruins do ambiente empresarial, criando oportunidades para novos entrantes – combinado a políticas de austeridade. Gradualmente, a confiança será restabelecida e o crescimento retornará de forma sustentável.
A última década foi um laboratório econômico em que, após um gigantesco choque ao sistema, as duas prescrições para recuperação econômica foram postas à prova. Correndo o risco de cometer uma grosseira simplificação, pode-se argumentar que EUA seguiram políticas mais próximas à prescrição keynesiana de políticas fiscais anticíclicas, enquanto a União Europeia adotou políticas mais alinhadas à ortodoxia de austeridade neoclássica. Também cometendo simplificação, pode-se argumentar que o veredito da história foi favorável ao primeiro. A economia americana saiu mais rapidamente da crise e voltou a crescer de forma consistente, ainda que sem a pujança anterior. A economia europeia teve lampejos de crescimento, mas, durante a maior parte da década, o crescimento europeu foi anêmico.
O Brasil destoou dessa narrativa. Sua economia é relativamente fechada e seu sistema financeiro, pouco alavancado. Essas características blindaram-no dos piores efeitos da GCF. Mesmo sem ter sofrido um colapso do sistema financeiro como as economias desenvolvidas, o Brasil adotou políticas fiscais expansionistas de cunho keynesiano – sobretudo, a partir do primeiro governo de Dilma Rousseff. Sob a alcunha de “Nova Matriz Econômica” o governo Rousseff aumentou perigosamente déficits fiscais e endividamento público. Como previsto por neoclássicos, o investimento privado começou a minguar, a economia começou desacelerar e a inflação, a subir. Em 2014 o país entrou em recessão e, no ano seguinte, a inflação anual atingiu dois dígitos (a inflação começou a ser debelada em 2016, mas o baixo crescimento está conosco até hoje). Houve uma guinada no segundo governo Rousseff em direção a políticas de austeridade fiscal, que continuaram sob Temer e o primeiro ano do governo Bolsonaro.
A pandemia abriu um novo capítulo nessa história. O enorme custo dos programas de transferência de renda, crédito e estímulo econômico, adotados por governos em todo o mundo em resposta à pandemia, não serão financiados apenas pelo mecanismo tradicional de emissão de dívida pública e aumento de impostos pelos tesouros públicos, mas diretamente, via impressão de dinheiro pelos bancos centrais – seja via compra de títulos públicos (monetização da dívida pública), seja pela compra de ativos privados (ações, junk bonds, etc).
Tais políticas, antes consideradas heterodoxas demais até para keynesianos, foram recicladas e resgatadas para o mainstream sob novo rótulo: “Modern Monetary Theory” (MMT), adquirindo um verniz de respeitabilidade até entre alguns membros do establishment financeiro.
No Brasil, em que a memória das nossas desventuras heterodoxas ainda é fresca, estas ideias colidem com a realidade de um setor público gravemente desequilibrado. O governo logrou emplacar uma reforma da Previdência em seu primeiro ano, mas todos entendiam que muito restava a ser feito. O mercado cobrava do ministro Paulo Guedes as reformas administrativa, tributária e a ambiciosa agenda de privatizações prometida em campanha. Sem apoio do presidente – nunca um entusiasta de reformas – e nem uma base no Congresso, o ministro Guedes dava voltas e procrastinava. A travessia do portal negro desembocou num mundo às avessas. O mercado esqueceu as reformas e parece contente em assistir à rápida deterioração das contas públicas. O liberal Guedes abraça políticas de auxílio emergencial e crédito a empresas contrárias à sua doutrina de reduzir a presença do Estado na economia. O presidente – às voltas com escândalos de corrupção na família, ameaças de golpes de Estado (reais ou imaginários) e cruzadas negacionistas, não poderia estar mais alheio aos problemas da economia. As bolsas no Brasil e no mundo sobem, não porque as perspectivas de lucro das empresas sejam brilhantes (não são), mas porque a alternativa – juros reais negativos – é ainda pior.
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Num momento em que o Brasil desponta como um dos epicentros globais da pandemia de COVID-19, atrás apenas dos EUA, cabe refletir sobre alguns temas que, para nós, na Giant, são caros: o imperativo da ciência, dados, modelagem e decisões baseadas em evidências.
Pessoas podem razoavelmente divergir sobre a melhor forma de organização social, política ou econômica; sobre o melhor time de futebol de todos os tempos ou o que constitua uma boa vida. São domínios em que interpretações conflitantes podem conviver sujeitas a diferentes preferências pessoais, juízos normativos e opiniões subjetivas infundadas em fatos.
Outros domínios do conhecimento – em particular, medicina, epidemiologia e farmacologia – inserem-se na categoria das ciências naturais. Tais domínios estão sujeitos a métodos bem definidos e rigorosos: observação e coleta de dados empíricos; análise dos dados através de ferramentas estatísticas; formulação de hipóteses e construção de modelos matemáticos, capazes de explicar as observações e produzir previsões testáveis. Nesses domínios, o conhecimento avança por meio da pesquisa e cuidadoso acúmulo de evidências. Esse procedimento, que em síntese é o método científico, conduz a conclusões que independem da orientação política, afiliação religiosa ou time do coração do pesquisador.
Mutatis mutandis, nós, na Giant, aplicamos exatamente esse método à gestão financeira.
Os avanços no conhecimento e da tecnologia – que, nos últimos três séculos, proporcionaram à humanidade um extraordinário aumento de riqueza material e qualidade de vida – atestam o poder do método científico. Mas é instrutivo apontar as suas limitações. A ciência não é capaz de “provar” isto ou aquilo. Ela diz apenas se esta ou aquela teoria é consistente com a realidade observada. Neste sentido, ela não revela “verdades” metafísicas (domínio da religião). Ciência é o conjunto de hipóteses (ou teorias) que ainda não foram falseadas pelos dados. Os dados, por sua vez, podem ser escassos ou inacessíveis, conter ruído e, frequentemente, são em quantidade insuficiente para permitir conclusões definitivas.
Modelos são a codificação matemática de teorias. Todos os modelos são errados, na medida em que sejam incapazes de retratar a realidade em toda sua complexidade. Mas alguns modelos são úteis, enquanto gerem previsões que auxiliem na tomada de decisões. Os primeiros modelos epidemiológicos da pandemia de COVID-19 claramente sofreram pela escassez de dados e por não anteciparem as reações de defesa da sociedade – distanciamento, isolamento, uso de máscaras – tendo gerado previsões iniciais muito pessimistas. Ainda assim, foram úteis para quantificar piores cenários e desenhar políticas sanitárias para evitá-los. Com o passar do tempo e o acúmulo de dados, foi possível calibrar os parâmetros e melhorar a acurácia das previsões.
Considerações semelhantes cabem à polêmica em torno da droga cloroquina e seus derivados no tratamento à COVID-19. Uma característica da doença, felizmente, é a sua letalidade relativamente baixa (~1% dos infectados). Esta mesma característica, entretanto, torna praticamente sem valor a experiência anedótica de pacientes tratados por um médico, ou mesmo um hospital. Por esse motivo, foi necessário tempo e muita pesquisa para encontrar uma droga que, sugere a evidência, seja realmente eficaz no tratamento à COVID-19: dexametasona.
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Atribuição de performance dos fundos Giant
O fundo Zarathustra FIC FIM rendeu 2,34% no segundo trimestre e fechou o primeiro semestre de 2020 com retorno acumulado de 7,85% (445,4% do CDI). Contribuíram para o resultado sobretudo posições compradas em dólar contra real, aplicadas em juros locais e compradas em bolsas globais. As estratégias de commodities contribuíram negativamente no período. O fundo Sigma FIC FIM fechou o primeiro semestre com ganho de 5,66% (320,9% do CDI). No segundo trimestre o fundo obteve ganhos expressivos em todas as classes de ativos, os destaques positivos tendo sido as posições em ações, que se beneficiaram da forte recuperação das bolsas globais. O fundo segue com alocação de risco parcialmente reduzida e sem posições em commodities.