“O vento mudou. E rápido.”
Ana Paula Vescovi, Valor Econômico 29 março 2021
DUAS NOVAS VARIÁVEIS ENTRARAM EM CENA em 2021, produzindo dramática alteração na paisagem financeira: 1) a ampliação e aceleração de campanhas de vacinação, sobretudo nos países desenvolvidos; 2) a aprovação, pelo congresso americano, de um conjunto de programas de estímulo enviados pelo presidente Biden. Juntas, essas variáveis criaram um ambiente de forte aquecimento global, mas também ressuscitaram velhos fantasmas de elevação de inflação e juros. Entre mortos e feridos na economia global, salvar-se-ão todos que conseguirem domar a pandemia.
Primavera para Biden e América?
Em 2021, teve início a maior campanha de vacinação mundial da história. Foram mais de 700 milhões de doses contra COVID-19 aplicadas no primeiro trimestre, quantidade suficiente para vacinar cerca de 5% da população mundial. A distribuição, contudo, foi bastante concentrada nos países ricos. Dez países receberam 75% das doses de vacina. Os EUA, em particular, com cerca de 4% da população mundial receberam 24% das vacinas. O número de vacinações diárias naquele país subiu de 250 mil, no início de janeiro, para mais de dois milhões ao final de março (e mais de 4 milhões no começo de abril). Mais de 30% da população americana recebeu ao menos uma picada de vacina no primeiro trimestre. Na contramão, o número diário de casos confirmados desabou de 250 mil para menos de 70 mil no mesmo período.
O novo governo teve um impacto imediato e de largo alcance também sobre a política econômica. Antes de completar a marca de 100 dias, aprovou dois pacotes que, juntos, somam mais de 18% do PIB – comparável, em dimensão e escopo, ao New Deal de FDR nos anos 30.
O primeiro pacote soma US$ 1,9 trilhão e é focado em alívio para famílias de baixa renda. Cerca de 130 milhões de lares receberão cheques no valor de US$1.400 em abril. O grosso dos recursos se destina a atenuar os efeitos econômicos da pandemia, mas há programas permanentes como uma renda universal infantil (que deverá ter impacto duradouro sobre pobreza e desigualdade).
O segundo pacote, aprovado em março, destinará mais de US$ 2 trilhões a investimentos em infraestrutura, pesquisa e desenvolvimento e inovação tecnológica – bem como reformas radicais em setores como energia e transportes visando a “descarbonização” da economia, um mini Green New Deal.
A ambição e alcance dos programas do governo democrata levam a crer que, mais do que políticas para mitigar os efeitos da pandemia, “Bidenomics” representa uma ruptura fundamental do paradigma vigente, um retorno à filosofia de Big Government que marcou o período pós-guerra e pré-Reagan, cujos efeitos de longo prazo serão profundos.
O tamanho do estímulo levou o Fed a revisar sua projeção de crescimento do PIB americano para 6,5% em 2021. China e Europa também deverão ter um ano de forte recuperação econômica. O FMI projeta crescimento chinês de 8,1% em 2021 e, apesar dos tropeços na vacinação, 4,4% para zona do Euro. O forte crescimento das maiores economias globais, aliado ao consumo represado em 2020, o recuo da pandemia na Europa e América do Norte (bem como o efeito estatístico da comparação com 2020) farão com que 2021 quase certamente seja um ano de crescimento recorde. A se confirmar a projeção do FMI de 6%, o ano de maior crescimento desde 1973.
A má notícia é que o ambiente global superaquecido pressiona a inflação. Analistas projetam alta de preços de 2,4% nos EUA em 2021, enquanto o breakeven dos TIPS (títulos indexados à inflação) rondam 2,6% – longe de um nível alarmante, mas acima da meta informal de 2% do FED.
A voracidade chinesa por commodities, sobretudo agrícolas, e a desorganização das cadeias de suprimento globais criaram escassez de insumos e contribuíram ainda mais para a escalada de preços (o acidente com o cargueiro Ever Given, no Canal de Suez, só agravou a situação). Tudo isso cria terreno fértil para alta dos juros longos (não confundir com os juros básicos, controlados pelos bancos centrais, que se mantêm inalterados). A referência para os mercados globais de renda fixa, a taxa do título de 10 anos do Tesouro americano, dobrou no trimestre para 1,65% (Gráfico 1).
Gráfico 1: Curva de retorno do título de 10 anos do Tesouro Americano no primeiro trimestre de 2021, até dia 31 de março. Fonte: Bloomberg. Elaboração: Giant Steps Capital.
O FED, preocupado com um repeteco do “Taper Tantrum” de 2013, tratou de acalmar ânimos: reafirmou o compromisso de manter os juros básicos colados em zero pelo tempo necessário.
Além de todos os efeitos descritos acima, o Brasil ainda foi castigado por uma alta de 10% do dólar. A inflação já realizada no ano, e deterioração de expectativas (Gráfico 2) ameaçam o cumprimento da meta de inflação em 2021. Diante desse quadro, o COPOM não teve alternativa senão iniciar um ciclo de aperto de juros. Subiu a SELIC para 2,75% — decisão amplamente esperada, mas cuja magnitude, 75bps, surpreendeu. Deixou engatilhada ainda uma nova alta de igual magnitude na reunião de maio, para não deixar dúvidas.
Gráfico 2: Mediana e dispersão (10 dias) das previsões da inflação do último trimestre comparadas ao valor realizado pelo BC. Fonte: BCB, Relatório Focus. Elaboração: Giant Steps Capital
Tristes Trópicos
Enquanto no hemisfério norte nascem os primeiros brotos da primavera, ao sul do equador o outono promete ser longo e tenebroso.
A pandemia estabeleceu uma nova ordem mundial que divide países em três categorias. A primeira é constituída daqueles que estão debelando a pandemia graças à rápida e maciça campanha de vacinação. EUA, Reino Unido, Israel e Chile pertencem a essa categoria. Todos se encontravam em situação calamitosa ao final de 2020. O Reino Unido, em particular, sofria com uma nova variante autóctone do vírus, mais virulenta e letal. Todos, porém, fecharam acordos com os laboratórios para receber vacinas em quantidade suficiente para imunizar sua população. Ao fim do primeiro trimestre, experimentavam significativa redução de casos – alguns, como Israel, praticamente erradicando a doença. Os países europeus, com um pouco de boa vontade, também se enquadram nesse grupo: após um início de campanha conturbado e vacilante, estão recuperando terreno e devem chegar ao verão com altos índices de vacinação.
O segundo grupo é dos países que, graças a intervenções não farmacológicas (testagem e rastreamento, lockdowns, etc) implementadas desde cedo e com rigor, conseguiram controlar a propagação do vírus. Agora, têm o luxo de não terem pressa na vacinação. Pertencem a essa categoria os países do sudeste asiático, a Nova Zelândia, Austrália e Canadá.
Países da primeira categoria colhem o bônus econômico: começam a levantar restrições e o retorno à normalidade está no horizonte. Como vimos acima, têm expectativa de forte crescimento em 2021. O desempenho de seus mercados financeiros reflete essa expectativa, (como podemos ver no gráfico de dispersão entre retorno dos índices de bolsa e taxa de vacinação; Gráfico 3). Os países do segundo grupo foram menos afetados, mas também se beneficiarão da melhora nas condições econômicas.
Gráfico 3: Retorno dos índices da bolsa de versus a taxa de vacinação de cada país. Fonte: Our World in Data. Elaboração: Giant Steps Capital
E há um terceiro grupo de países que não foram bem sucedidos em controlar a pandemia — seja por falta de êxito ou vontade na implementação de restrições, seja por negligência das autoridades —, cuja vacinação segue lenta ou inexistente pela escassez de vacinas. O Brasil e maior parte dos países da América Latina pertencem a esse terceiro grupo. O Brasil pode ainda ser subcatalogado no grupo de países que viraram párias internacionais, por terem se tornado incubadoras de novas cepas de vírus.
Acometido por uma nova variante do corona vírus, mais virulenta e letal, o Brasil voltou a ser epicentro global da pandemia. Pelas estatísticas oficiais, 126 mil brasileiros perderam a vida vítimas de COVID-19 nos primeiros três meses do ano (versus 195 mil no ano inteiro de 2020). A taxa diária de novos casos dobrou entre o início de janeiro e o fim de março, levando ao colapso do sistema hospitalar. O quadro é crítico: UTIs lotadas, falta de insumos básicos para pacientes intubados e profissionais à beira da exaustão.
Com a imunização engatinhando (menos de 10% da população até 31 de março), restava isolar e restringir a circulação. De fato, países em situação muito menos dramática do que a brasileira – como Alemanha, Canadá e até Reino Unido, um dos que mais vacinou – mantinham lockdown ainda em abril. O presidente brasileiro, contudo, se opõe a tais medidas e se empenhou numa campanha pessoal contra governadores que as impusessem. A nomeação do quarto ministro da saúde em um ano dá a medida da falta de rumo da política sanitária federal. É certo que a troca de um general por um médico seja progresso. Mas tudo indica que o novo ministro não terá plena autonomia para tomar todas as medidas necessárias.
O novo ambiente econômico global, com a volta de pressões inflacionárias e o temor de um choque de juros, coloca desafios à economia brasileira. Mas, pelos padrões históricos, ainda é extremamente benigno. A alta de preços de commodities é um bálsamo para economias exportadoras, como a do Brasil. Em outras circunstâncias, a moeda brasileira teria se beneficiado da melhora nos termos de troca e até recuperado as perdas de 2020. Ao invés disso, foi uma das de pior desempenho no mundo em 2021 (Gráfico 4). Igualmente, as ações brasileiras estão na lanterninha de desempenho no ano.
Gráfico 4: desempenho das principais moedas emergentes no primeiro trimestre de 2021, até dia 28 de março. O Real (BRL) acumulou um retorno negativo de -9,20% frente ao Dólar (USD). Fonte: Bloomberg. Elaboração: Giant Steps Capital
Por que os mercados brasileiros foram tão castigados? É difícil escapar à conclusão de que o Brasil foi punido por uma combinação de: má gestão da segunda onda da pandemia, mais devastadora do que a primeira; e rápida deterioração do ambiente econômico e político, na esteira do aguçamento da crise sanitária.
Se na saúde as ações do governo têm sido consistentemente erráticas, na política o governo apostou numa aliança com o chamado “Centrão” — o bloco de parlamentares ao qual falta convicção ideológica, mas sobra pragmatismo político — para retomar a governabilidade. Ungiu o líder do Centrão, Arthur Lira, presidente da câmara dos deputados. “Enfim!”, comemorou o mercado: “uma base para o governo chamar de sua”.
Mas a onça não perde as pintas. Quando o mercado começava a contar as favas para a aprovação das reformas tributária e administrativa, Bolsonaro lembrou a todos que seguia sendo… Bolsonaro. Num rompante, ejetou o presidente da Petrobras em represália à decisão de reajustar preços de combustíveis. O Banco do Brasil já fora submetido a semelhante tratamento. “Estatais precisam ter função social”, bradou o presidente, lançando mercados em desarranjo, para o desconsolo do Posto Ipiranga. Se a Faria Lima possui alma, é seguro afirmar que ela morreu um pouquinho naquele instante.
Leopard on the prowl – 1893, Unsigned
A anulação pelo STF da sentença de Luís Inácio “Lula” da Silva embolou ainda mais o meio de campo político. O ex-presidente foi imediatamente alçado à condição de principal opositor do atual presidente e favorito à eleição presidencial de 2022.
A confusão prosseguiu com uma reforma ministerial que culminou na troca do ministro da defesa e a renúncia dos três comandantes militares – num gesto interpretado como recado da alta cúpula ao presidente. Para alguns, a mensagem é que tentativas de politizar as forças armadas não serão toleradas. Outros, menos caridosos, viram na renúncia coletiva uma recusa em aderir a aventuras não republicanas.
Enquanto o país tentava compreender o significado profundo desses eventos, tramitava no Congresso um orçamento descrito ora como “peça de ficção”, ora como “inexequível”. Despesas obrigatórias foram subestimadas para acomodar gastos discricionários prometidos aos novos aliados do Centrão. Técnicos da Fazenda, alarmados com a possibilidade de que o orçamento, tal qual enviado ao congresso, viole a Constituição, recusaram-se a subscrevê-lo.
O tabuleiro político
Pesquisas mostram queda na popularidade do presidente, mas menos do que a de governadores — sobre quem recai a maior parte do ônus por medidas impopulares como isolamento. O presidente conta com uma base cativa, cerca de 30% do eleitorado, cuja lealdade é incondicional. Mas os sinais de insatisfação são crescentes.
É sintomático que boa parte da elite empresarial e financeira do país tenha assinado uma carta contendo duras críticas à política do governo federal, sobretudo à resposta (ou falta dela) à pandemia. A carta teve ares de “desembarque” pela elite do governo. Parte da oposição pede abertura de impeachment contra o presidente. O centrão tem barrado tais pedidos mas, mesmo ele, emite sinais de descontentamento com a tragédia sanitária em curso. Em discurso no plenário do congresso, Lira cobrou uma mudança de rumo do Executivo e ameaçou com “remédios amargos, alguns deles fatais”.
Se a eleição presidencial fosse hoje, é provável que Bolsonaro e Lula polarizassem o voto no segundo turno, com ligeira vantagem para o segundo. Um segmento considerável da sociedade, porém, cansada do populismo e extremismo que caracterizaram a política brasileira na última década, busca uma terceira via, capaz de oferecer um retorno à moderação, uma agenda de reformas e um projeto de desenvolvimento para o país em 2022. Hoje, essa alternativa não possui viabilidade eleitoral. Mas em um ano, tudo pode mudar. Não seria a primeira vez.
Resultados dos fundos Giant
O fundo Zarathustra FICFIM teve um resultado negativo -1,62% no primeiro trimestre de 2021. As estratégias focadas em juros, renda fixa e ações foram destaques do lado dos ganhos. As estratégias focadas em moedas e commodities geraram a maior parte das perdas.
O fundo Sigma FICFIM encerrou o primeiro trimestre com rendimento de -3,83%. O fundo teve ganhos na classe de ações, mas registrou perdas com a alta de juros locais e internacionais.
Métricas de performance no primeiro trimestre de 2021
Métricas de performance nos últimos 12 meses
Métricas de performance desde a abertura dos fundos
Referências:
- More Than 748 Million Shots Given: Covid-19 Vaccine Tracker (bloomberg.com)
- “Após queda de Trump, quem será o Biden brasileiro?” – Pedro Fernando Nery – Estadão Economia
- Bidenomics, Explained – Noahpinion
- Programa de Estímulo Econômico de Joe Biden – Larry Summers and Paul Krugman
- World Economic Outlook Update, January 2021 – International Monetary Fund
- Brasil no Combate ao Coronavírus – Our World in Data
- “Hélio Magalhães diz em carta que deixa BB pelo ‘reiterado descaso’ do governo com banco e estatais” – Valor Econômico
- “Economistas assinam carta pedindo efetividade no combate à covid-19 no Brasil” – Uol Economia
- “Stuhlberger, do fundo Verde: Bolsonaro não tem mais o meu voto” – Valor Investe
- Lira cobra reação do governo Bolsonaro na crise e ameaça com ‘remédios amargos’ do Congresso, ‘alguns fatais’ – 24/03/2021 – Poder – Folha (uol.com.br)
Demais consultas:
1. Economia – Estados Unidos e mundo:
- https://www.nytimes.com/2021/03/11/opinion/biden-covid-relief-welfare.html
- https://www.vox.com/2021/4/2/22364100/biden-human-infrastructure-jobs-plan
- https://www.bloomberg.com/news/articles/2021-03-15/u-k-10-year-inflation-gauge-advances-to-highest-since-2008
- GDP growth (annual %) | Data (worldbank.org)
2. Economia e saúde – Brasil
- https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,bc-se-ve-forcado-a-subir-juros-em-plena-crise-por-causa-da-aceleracao-da-inflacao
- https://ciencia.estadao.com.br/noticias/geral,brasil-e-reino-unido-sofrem-com-variantes-mas-britanicos-souberam-fazer-lockdown-e-vacinacao,70003646463
- https://blogs.bmj.com/bmj/2021/04/05/the-catastrophic-brazilian-response-to-covid-19-may-amount-to-a-crime-against-humanity/
Gravura: Crossing the Styx – Duré, Gustave – 1861
Sinto falta de uma carta que vá além da descrição do cenário macroeconômico, e mais alinhada com a estratégia da GS. Por exemplo, poderia abordar conceitos de gestão quantitativa e entrar, em alguma medida, nos modelos aplicados nos fundos.