Carta aos Cotistas (3Q2020)

“The fox knows many things, but the hedgehog knows one big thing.”

The Hedgehog and the Fox, Isaiah Berlin

No terceiro trimestre de 2020, a pandemia de SARS-CoV2 continuou a consumir uma larga banda do espectro e da paciência da humanidade. Apesar de arrefecer no Brasil e EUA, os dois líderes globais em COVID-19, a propagação da doença se acelerou em outro países, como Índia e Rússia, e o total de mortos no mundo ultrapassou um milhão. Se no front sanitário houve escassos motivos para comemoração, a recuperação em “V” da economia global foi, sem dúvida, um desdobramento positivo. É bem verdade que a recuperação foi desigual e muitos setores, aqueles mais afetados pelo isolamento – como transporte aéreo e turismo – continuam deprimidos e ensejando o que alguns economistas apelidaram recuperação em “K”).

No Brasil não foi diferente: também aqui a economia surpreendeu positivamente, turbinada pela injeção de mais de R$300 bilhões do auxílio emergencial – para a alegria do presidente que, de olho na reeleição, viu sua aprovação subir ao maior nível desde o início do mandato. Entretanto, o grande aumento do gasto agravou ainda mais a já delicada situação fiscal do setor público; a indefinição orçamentária – aliada ao impasse da agenda de reformas no Congresso ­– anuviou o ambiente político e matou o rally dos mercados locais. De quebra, a explosão de gastos criou dificuldades para o financiamento do Tesouro Federal e acendeu alertas no mercado financeiro.

***

Nas últimas quatro décadas, a economia brasileira foi assolada por três mazelas: inflação crônica, elevado endividamento externo e desequilíbrio das contas públicas. O país domou o dragão inflacionário nos anos 90, com o Plano Real e, na década seguinte, praticamente quitou a dívida externa soberana graças ao boom dos commodities. Mas, apesar de aprovar a LRF e diversas outras emendas constitucionais, como o Teto de Gastos e as várias reformas da Previdência, e de gerar superávits primários consistentemente por mais de uma década, jamais logrou ajustar suas contas públicas.

Uma Breve Recapitulação da História Fiscal Brasileira

A crise fiscal brasileira – crônica, mas que ora ameaça ficar aguda – foi gestada há exatamente três décadas e dois anos na promulgação da Constituição de 1988, a chamada “Constituição Cidadã”. Os deputados constituintes da classe de 88, a maioria egressos das fileiras da oposição ao regime militar e imbuídos de grande consciência social, estavam decididos a corrigir mais de vinte anos de baixos investimentos sociais durante o regime militar. Desenharam um Estado de Bem-Estar Social de inspiração europeia – pródigo em direitos e políticas assistencialistas, generoso na distribuição de benesses, como aposentadoria integral por tempo de serviço para os servidores públicos.

Furtaram-se, entretanto, de revelar de onde sairia o dinheiro para financiar tais programas. Vincularam despesas a receitas, engessando o orçamento e removendo do Congresso o poder discricionário sobre os recursos. E, assim, entronizaram no texto da Carta um desequilíbrio estrutural. Por muito tempo, esse desequilíbrio permaneceu oculto graças ao imposto inflacionário (que corroía renda transferida). Quando a inflação desabou, na esteira do Plano Real, os desequilíbrios escancararam-se e o gasto público passou a crescer muito acima do PIB (de fato, segundo levantamento recente do FMI, o Brasl foi o país que mais aumentou gasto público no mundo desde 2008). Teve início uma escalada da carga tributária que, de cerca de 25% do PIB em meados da década de 90, chegaria aos atuais 35%.

Houve um período de crescimento sustentado entre 2000 a 2012, quando a expansão da economia e formalização do emprego turbinaram a arrecadação, permitindo a geração de resultados primários consistentes. Mas, com a derrocada das políticas intervencionistas da chamada Nova Matriz Econômica, no primeiro governo Dilma Rousseff, o país deixou de gerar superávit em 2013 e, desde então, nunca mais voltou a gerar um superávit primário. Não coincidentemente, o país oscila entre crises e baixo crescimento desde então.

A aprovação do Teto dos Gastos em 2017 o governo Temer desarmou a bomba-relógio que quase explodiu nos estertores do governo Dilma. Em 2019, o Congresso aprovou a PEC da Previdência. Esta reforma, aliada à forte queda dos juros, prometia recolocar o país numa trajetória de sustentabilidade fiscal. Naquele ano o endividamento bruto do setor público caminhava para se estabilizar ao redor de 75% do PIB – um nível alto para países de renda média como Brasil, mas administrável. A pandemia jogou por terra todos os planos e projeções. O resultado primário em 2020 que, no início do ano era projetado em -1%, agora é projetado em -12% (Gráfico 1). O endividamento bruto deve encostar em 100% do PIB. Esses números já seriam por si sós desastrosos mas poderiam, com alguma caridade, ser racionalizados pela necessidade de combater os efeitos da pandemia. Porém, na ausência de uma clara sinalização do governo de retorno ao caminho da disciplina fiscal em 2021, equivalem a um fósforo no paiol.

Gráfico 1: Programas emergenciais levaram a forte deterioração nas expectativas dos analistas para o resultado primário do governo em 2020 (Giant Steps, Focus/BCB)

Bolsonaro e a guinada fiscal (ou: às favas a austeridade, importam os votos)

Com a pandemia provocando uma parada cardíaca na economia, o governo correu para reanimá-la com maciças transferências de renda (Renda Cidadã) e concessão de crédito (Pronampe). Ao final do terceiro trimestre esses programas tinham chegado a mais de R$600 bilhões, ultrapassado a marca de 8% do PIB – verdadeiro tratamento de choque no paciente. A popularidade do presidente – que, no primeiro semestre, havia mergulhado graças à pandemia e à sucessão de escândalos envolvendo o clã presidencial ­­– se recompôs e subiu a nível recorde no terceiro trimestre.

Bolsonaro passou três décadas apoiando políticas intervencionistas no Congresso Federal. Foi contra todas as reformas liberalizantes com uma constância de fazer inveja a qualquer deputado de esquerda. Esse passado foi varrido para debaixo do tapete na campanha de 2018. Para aumentar seu apelo entre certos segmentos do eleitorado – notadamente, o setor financeiro – o candidato travestiu-se de defensor do liberalismo e vestiu o manto do Estado mínimo. E, para não deixar dúvidas, delegou a agenda econômica a um agregado de última hora, Paulo Guedes, seu “Posto Ipiranga”.

No primeiro ano de mandato, sua falta de convicção ficou evidente no tímido apoio dado à reforma da Previdência (que saiu graças à determinação do líder do Congresso, Rodrigo Maia). O presidente desconversou sobre as privatizações – alardeadas com estardalhaço, um ano antes, pelo ministro Guedes – e acabou perdendo uma das estrelas do seu governo, o secretário de desestatizações Salim Mattar, frustrado pela falta de progresso no programa de privatizações. Já havia quebrado outra promessa de campanha, não negociar com a “política tradicional”, quando fechou acordo com o Centrão, a vanguarda fisiológica do congresso. Finalmente, embalado pela popularidade do Renda Cidadã, perdeu qualquer pudor e passou a pressionar pela permanência do auxílio emergencial. Não sem certo requinte de perversidade, incumbiu o ministro Paulo Guedes de desenhar o novo programa.

Fusão do antigo Bolsa Família e outros programas assistenciais, o plano seria batizado como “Renda Brasil”. Para a equipe econômica, a quadratura do círculo consistia em encontrar R$100 bilhões por ano parfinanciar o Renda Brasil preservando o Teto de Gastos. A equipe bem que tentou tirar leite de pedra – fosse remanejando verbas de outros programas, cortando benefícios de certas categorias ou congelando salários de outras. Nenhuma solução foi palatável ao presidente (que, contrariado, ameaçou mostrar cartão vermelho a integrantes da equipe).

Deu-se o impasse: Bolsonaro insistia em lançar seu programa de renda mínima – mas sem fazer qualquer concessão para viabilizá-lo; o ministro não admitia furar o Teto sabendo que, fazê-lo, seria serrar uma perna do tripé macroeconômico e enterrar de vez sua reputação.

É verdade que Guedes se desgastou com promessas quixotescas (privatizações que nunca saíram do papel, zeragem do déficit público, etc.) e pela insistência em ideias descartadas (como ressuscitar a CPMF). Mas, quaisquer que sejam suas outras deficiências, o Posto Ipiranga nunca fraquejou na defesa da disciplina fiscal. Muito se tem especulado sobre seu eventual desembarque do governo, que certamente causaria ondas de choque nos mercados e desestabilizaria o próprio governo. Apesar dos conflitos e frustrações, o ministro parece imbuído de um genuíno senso de dever que o mantém no governo e lhe dá estômago para engolir sapos os mais indigestos. Guedes é como a raposa da fábula: sabe muitas coisas, tenta vários caminhos – uns melhores do que outros. Bolsonaro é como o ouriço: sabe apenas uma, grande coisa: precisa se reeleger.

Alvoroço nos mercados (ou: o Tesouro descasca um abacaxi)

Enquanto o governo emitia sinais preocupantes na esfera econômica, os alarmes soavam nos mercados financeiros. O desarranjo fiscal levou ao aumento dos juros longos, o que desestimula o investimento e compromete o crescimento. No ano, o real é a moeda de pior desempenho dentre as mais negociadas, acumulando desvalorização de quase 40% contra a moeda americana. A forte alta do dólar fez disparar os índices de preço no atacado e ameaça contaminar os índices de preços ao consumidor. De fato, depois de ir a nocaute no primeiro semestre, o IPCA voltou a subir no segundo puxado sobretudo pelos alimentos e combustíveis. O índice Bovespa, que em julho chegou a retomar o nível de 105.000 embalado pela recuperação econômica, murchou de volta aos 95.000 no final do terceiro trimestre.

A enorme elevação de gastos do governo já seria, por si só, um desafio considerável para o Tesouro, responsável pela emissão de títulos para financiar a gastança. A tarefa se torna ainda mais delicada pelo nível excepcionalmente baixo da taxa SELIC – que, a 2,00%, está abaixo da inflação corrente e mesmo da inflação projetada para 2021 (Gráfico 2) (o mercado, por sinal, duvida que SELIC a permaneça em 2% por muito tempo: a estrutura a termo de juros projeta a taxa do Banco Central em 4% na segunda metade de 2021).

Gráfico 2: Expectativas para IPCA e PIB em 2021 (Giant Steps, BCB/Focus)

Alheio a essas preocupações, ou talvez por falta de opções, o Tesouro resolveu ofertar um grande volume de LFTs em setembro (Gráfico 3). As LFTs são títulos pós-fixados indexados à SELIC. Não perdem valor quando os juros sobem e, por serem garantidas pelo Governo Federal, são o que de mais próximo há no mercado brasileiro de um instrumento livre de risco – o “porto seguro” dos investidores locais. Porém com a SELIC rendendo menos do que a inflação, LFTs se tornam pouco atraentes para os investidores. De forma que, para absorvê-las nos leilões do Tesouro, os dealers exigiram um ágio sobre a taxa desses títulos (ou, de forma equivalente, um deságio sobre o seu preço). Como consequência, as LFTs perderam valor e fundos que carregam esses títulos sofreram perdas – fenômeno visto pela última vez no turbulento ano de 2002.

Gráfico 3: Deságio dos títulos públicos e leilões do Tesouro Federal (Giant Steps, Tesouro, Anbima)
*Gráfico ajustado em 15/10/2020

Perdas em fundos DI são um sinal de alerta pois podem levar a fuga de investimentos, dificuldades de rolagem da dívida do Tesouro e, no extremo, uma explosão inflacionária. O Tesouro tomou nota e reduziu a oferta de LFTs nos leilões seguintes. O Banco Central atuou de forma coordenada e adotou restrições no mercado de compromissadas para estimular a demanda por papéis do Tesouro. O ministro Paulo Guedes endureceu o discurso em favor da disciplina fiscalista negando-se, peremptoriamente, a furar o Teto. Este conjunto de medidas aliviou a pressão, ao menos temporariamente, sobre o mercado de títulos. Mas o susto foi grande e deixou muito investidor com os nervos em frangalhos. Resta saber se o presidente entendeu o recado.

Resultados dos Fundos:

O fundo Zarathustra FICFIM rendeu -2,09% no terceiro trimestre e encerra o trimestre com retorno acumulado de 5.59% (245% do CDI) no ano de 2020. A estratégia teve resultados positivos nas posições compradas em equities ao redor do mundo. Por outro lado, as posições aplicadas em juros locais e compradas em dólar contra uma cesta de moedas tiveram perdas, jogando o resultado do trimestre no negativo.

O fundo Sigma FICFIM fechou o terceiro trimestre com rendimento de 0,18% e acumula um retorno de 5.85% (256% do CDI) no ano de 2020. Os destaques positivos no terceiro trimestre foram as posições compradas em moedas emergentes contra o dólar, inflação e ações, com destaque para a bolsa americana. O fundo teve perdas na bolsa local e em commodities, com destaque para café, prata e cacau.

  1. https://www.investopedia.com/k-shaped-recovery-5080086
  2. https://exame.com/economia/milagre-economico-e-desigualdade-social-o-contraste-da-ditadura/
  3. https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2020/10/brasil-e-o-pais-que-mais-expandiu-gasto-publico-em-uma-decada.shtml
  4. https://gscap.com.br/carta-aos-cotistas-1q2020/
  5. https://www12.senado.leg.br/radio/1/noticia/governo-federal-ja-disponibilizou-r-600-bilhoes-no-enfrentamento-a-pandemia
  6. https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/05/rejeicao-a-bolsonaro-bate-recorde-mas-base-se-mantem-diz-datafolha.shtml
  7. https://www.jornaldocomercio.com/_conteudo/politica/2020/09/758527-lava-jato-denuncia-wassef-ex-advogado-dos-bolsonaros-sob-acusacao-de-lavagem-de-dinheiro.html
  8. https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/08/aprovacao-a-bolsonaro-sobe-e-e-a-melhor-desde-o-inicio-do-mandato-diz-datafolha.shtml
  9. https://www.seudinheiro.com/2019/privatizacoes/guedes-afirma-que-valor-de-estatais-a-serem-privatizadas-deve-superar-r-1-trilhao/
  10. https://braziljournal.com/por-que-sai-do-governo
  11. https://www1.folha.uol.com.br/poder/2017/08/1913378-na-festa-do-peao-bolsonaro-critica-bolsa-familia-e-legislacao-ambiental.shtml
  12. https://oglobo.globo.com/economia/sob-ameaca-de-cartao-vermelho-equipe-economica-adota-estrategia-do-silencio-24641984
  13. https://www1.folha.uol.com.br/colunas/marcos-lisboa/2020/09/encruzilhada.shtml
  14. https://www.jornaldocomercio.com/_conteudo/economia/2020/08/752297-igp-10-tem-inflacao-de-2-53-em-agosto-diz-fgv.html
  15. https://economia.uol.com.br/noticias/estadao-conteudo/2020/10/10/inflacao-e-a-maior-para-o-mes-em-17-anos.htm
  16. https://veja.abril.com.br/paginas-amarelas/edmar-bacha-o-problema-nao-esta-no-congresso-esta-na-presidencia/
  17. https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,tesouro-e-banco-central-anunciam-mudancas-na-oferta-de-titulos-publicos,70003470382

6 thoughts on “Carta aos Cotistas (3Q2020)

  1. Tiago says:

    Acho que rolou um Ctrl+C/Ctrl +V no percentual do CDI no resultado dos fundos (ambos estão com 256.3%) – CORRIGIDO . Fora isso, excelente resumo do cenário atual.

  2. Wilson de Azevedo Filho says:

    Excelente texto, muito bem escrito e de fácil assimilação. Parabéns pelo conteúdo e obrigsdo.

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